terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

INDÚSTRIA CULTURAL:
A comercialização da arte e seu reflexo[1]
(continuação)
Prof. Maicon Martta
Parte 2:

  1. A indústria cultural como fator alienador na sociedade e suas conseqüências:

A indústria cultural é uma conseqüência da nova sociedade de consumo nascida da consolidação do capitalismo como herança das revoluções do séc. XVIII, ou seja, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
Com o advento do capitalismo e as novas facilitações de créditos e a grande demanda dos mais variados produtos oferecidos no mercado, o homem, como “ser no mundo”, fascinado pelas novas possibilidades, acabou por criar novas necessidades, que por sua vez, caracterizaram a Sociedade de Consumo. Podemos fazer uma analogia entre a Sociedade de Consumo e a relação do não-ser expresso na obra Filosofia da Libertação, de Enrique Dussel. Escreve Dussel:
“O pensamento crítico que surge na periferia – à qual se deveria acrescentar a periferia social, as classes oprimidas, os lupem – termina sempre por dirigir-se ao centro. É sua morte como filosofia; é seu nascimento como ontologia acabada e como ideologia. O pensamento que se refugia no centro termina por ser pensado como a única realidade. Fora de suas fronteiras está o não-ser, o nada, a barbárie, o sem sentido. O ser é o próprio fundamento do sistema ou a totalidade de sentido da cultura e do mundo do homem do centro.” [2]

Dussel escreveu essas linhas visando uma filosofia própria da América Latina, uma filosofia libertadora, uma filosofia para a periferia não só concentrada nos grandes centros representados pelos países europeus. O não-ser, no exemplo de Dussel, é o homem da periferia, é aquele que não participa do centro, é o oprimido. No contexto atual de uma Sociedade de Consumo, o não-ser pode muito bem ser representado por aquele que não pode comprar. No nosso mundo mecânico, em que a economia domina por causa da sua relação de poder, quem não pode comprar “não é”, quem não pode adquirir está fora do sistema, é o nada e o sem sentido. O “ser”, na Sociedade de Consumo, está anexado ao conceito de “Ter”, de “adquirir”. E numa sociedade em que o Consumo se torna sinônimo de existência, é natural pensar na “Indústria” que a sustenta.
É partindo desta contextualização que a crítica da Escola de Frankfurt, mais precisamente com Adorno e Horkheimer, se endereça à arte e sua comercialização, criando o termo Indústria Cultural. Porque como qualquer outro produto, a arte acabou por se anexar nesse mesmo processo de industrialização e comercialização. E com o desenvolvimento do Cinema e das rádios, a arte passou a ser um simples produto e, por conseqüência, um problema a ser pensado pela filosofia e também pela sociologia.
Por que essa comercialização da arte representa um problema a ser pensado? Primeiramente por causa do próprio processo de composição dessas obras. Anteriormente, a arte era composta visando a transcendência da própria obra caracterizado pelo talento do artista, que por sua vez, buscava se eternizar pela grandeza e clareza da sua arte. Com o mercado, o artista deixou de se preocupar com esse aspecto transcendente da sua obra e passou a se preocupar com o aspecto lucrativo que ela pode gerar. Não importa mais se a sua obra vai transcender a si mesma e perpetuar, o que importa é que ela esteja no mercado, que ela seja ouvida ou vista pelo maior número de pessoas possíveis, não importando se dentro de curto espaço de tempo ela caia no esquecimento. Podemos perceber este fenômeno com maior clareza nos dias de hoje no que concerne à música. Notoriamente percebemos no cenário musical, obras que não duram mais do que um ano ou dois e depois ninguém mais ouve falar. São produtos tipicamente comerciais, produzido para grande massa, produtos da indústria cultural. O artista deixou de transcender seu espírito, e em troca disso, passou a se preocupar com o aspecto lucrativo de sua arte, em contrapartida a própria composição se torna bem aquém do esperado, é o que Mukarovský chama de “obra-coisa”[3].  
Um outro elemento que faz com que esse problema da comercialização explorada por uma indústria cultural deva ser pensado, é a própria aceitação por parte da massa. Aqui, Adorno aprofunda sua crítica. Segundo ele, o próprio conceito de gosto acaba sendo afetado. Toda vez que a paz musical, escreve Adorno, se apresenta perturbada por excitações bacânticas, pode se falar da decadência do gosto[4]. Segundo o autor da Dialética do Esclarecimento, o conceito de gosto está decaído. O gosto deixou de ser um critério subjetivo de avaliação de acordo com a razão e o senso estético em bom ou ruim. O gosto passou a ser reconhecimento.
[...] Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal individuo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida[5].

O que Adorno está dizendo, é que as pessoas não gostam mais da música por seus próprios critérios de avaliação, mas gostam porque reconhece o que está tocando. De tanto ouvirem o que está na rádio, acaba gostando do que se toca. As categorias de arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para a apreciação musical de hoje.
Adorno é categórico ao reafirmar sua crítica e desgosto sobre a música comercializada, dizendo que o próprio trabalho do artista está prejudicado, uma vez que não tem outro fim a não ser o próprio comércio.
“A música de entretenimento serve ainda – e apenas – como fundo. Se ninguém é capaz de falar realmente, é óbvio também que ninguém é capaz de ouvir. Um especialista americano, que utiliza com predileção em especial a música – [...] alegou que os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição”[6].

A teoria crítica de Adorno salienta uma perda simbólica na linguagem. Como o critério subjetivo estético, em termos de bom e ruim deixou de existir, o novo conceito de gosto traz consigo outros elementos problemáticos como, por exemplo, a falta de analise crítica acerca do produto apresentado. Ao considerarmos que “gostar” é “reconhecer”, estamos aceitando sem nenhuma análise o que a Indústria Cultural está nos oferecendo. Esta aceitação sem crítica, segundo Adorno, nos leva à alienação.
A perda da linguagem já é uma conseqüência da alienação provocada pela Indústria Cultural. Sem falar que a própria cultura de massa comercializada por essa indústria, acaba por sugerir tendências e grupos, que acaba forçando o individuo a fazer uma nova imagem de si. A falta de reflexão nos leva a sérias conseqüências neste sentido. Mudamos nossas atitudes e nosso modo de ser para participar de determinados grupos que sofreram influência da indústria cultural. Produzimos-nos e nos adequamos a certos estilos, criando estereótipos em nossas próprias famílias, às vezes gerando conflitos. E, ainda a favor desta ideia lembra-se, por exemplo, que as crianças hoje dominam muito mais cedo a linguagem graças à veículos como o rádio, TV e a internet, e recebem por intermédio deles todos os elementos que constituirão a sua personalidade.
Em vista disso, um olhar cuidadoso deve ser lançado sobre essas mídias, para que o intelecto não caia na teia mansa da mera instrumentalização e na doce preguiça gerada pelo conformismo de simplesmente dizer sim.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, Theodor W. O fetichismo da musica e o regresso da audição. São Paulo - SP: Nova Cultural, 2005.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro - RJ: Jorge Zahar Editor, 1985.
____________________________________. Temas Básicos da Sociologia. São Paulo - SP: Cultrix, 1956.
TEIXEIRA, Coelho. O que é Indústria Cultural. São Paulo – SP: Editora Brasiliense, 1980.
BORNHEIM, Gerd. Páginas de Filosofia da Arte. Rio de Janeiro –RJ: UAPE, 1998.
PAVIANI, Jayme. Estética e filosofia da arte.Porto Alegre – Rs: Editora Sulina, 1973.
MUKAROUVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.
DUSSEL, Emrique. Filosofia da Libertação. São Paulo- SP: Edições Loyola, 1977.



[1] Adaptado do artigo original intitulado “A comercialização da arte e seu reflexo na educação”, apresentado como comunicação no 1ª Congresso Internacional sobre filosofia na Universidade, promovido pelo Departamento de Filosofia do Centro de Letras e Ciências humanas da UEL (Universidade Estadual de Londrina), no Paraná no período de 10 a 12 de maio de 2006.
[2] DUSSEL, E. Filosofia da Libertação. 1977, p. 11.
[3] Cf. MUKAROVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte, 1997.
[4] ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e o regresso da audição.2005, p.65.
[5] Ibid. p.66.
[6] ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e o regresso da audição.2005, p.67.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014


INDÚSTRIA CULTURAL:
A comercialização da arte e seu reflexo[1]
Prof. Maicon Martta
Parte 1:

Com o advento da modernidade e expansão do capitalismo, um efeito causado pelas revoluções testemunhadas pelo Séc. XVIII, uma nova sociedade passou a se desenvolver: a sociedade de consumo.
Em relação ao consumo, não podemos nos abster e nos considerarmos fora do sistema. Todos nós consumimos. Consumir é satisfazer necessidades, no entanto, não podemos ser hipócritas e dizer que não extrapolamos essas necessidades. Ao extrapolarmos nossas necessidades básicas, nos tornamos consumistas e membro participativo dessa sociedade iniciada no começo do Séc. XIX e que vem crescendo de forma assustadora a cada ano. Nós, com poucas exceções, fazemos parte de uma comunidade de consumo.
Os seres humanos, diferentemente dos outros animais, possuem mais do que necessidades fisiológicas e materiais. O humano sente necessidade de se humanizar e para tal, precisa de outros bens além do que se encontram no mercado ou nas lojas de conveniências. Por ser dotado de razão e sentimento, o homem necessita de bens culturais, além de fazer perpetuar o seu lado emotivo. Sendo assim, ele necessita se relacionar com o outro, no seio de sua família, na alegria de amigos e pessoas queridas, assim como extravasar suas angústias em bens simbólicos, como a arte.
Com o crescimento das cidades, fenômeno notório após a Revolução Industrial, a necessidade de se adquirir bens simbólicos se tornou tão exigente quanto à necessidade de se adquirir bens materiais. Com os problemas sociais, que afloraram juntamente com o desenvolvimento das cidades e a mudança repentina do espaço urbano, surgiram também problemas existenciais, angústias e ressentimentos. E como fármaco para esses males modernos, a Arte ascendeu como medida renovadora.
Não obstante, o seu efeito restaurador, a Arte, ainda era restrita para poucas pessoas, geralmente as que eram consideradas mais cultas. Apesar disso, a partir do inicio do Séc. XX, com a difusão dos meios de comunicação, novos artistas começaram a surgir e com eles novas manifestações artísticas, principalmente no cenário musical. Dessa forma, com o desenvolvimento das rádios, desenvolveu-se também uma nova manifestação musical, que passou a atender as grandes massas. Diante desta respectiva, pensadores passaram a analisar este fenômeno e refletir sobre os seus efeitos. Os primeiros a analisarem os efeitos comerciais da arte, em especial da música, foram os pensadores da chamada Escola de Frankfurt.
O conceito de Indústria Cultural surgiu pela primeira vez na década de 40, mais precisamente no ano de 1947 na obra Dialética do Esclarecimento, de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Segundo estes autores, o novo cenário que se formava, com o desenvolvimento do cinema, a disseminação da literatura em revistas, livros de bolso e da música, constituíam um novo sistema[2]. Este novo sistema, que os autores acentuam, é um sistema de consumo, em que a própria Arte se descaracterizava para se transformar num produto, ou, num negócio. Escreve Adorno e Horkheimer:

[...] O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passa de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.[3]

Fica evidenciada, na citação a posição dos autores quanto à composição das obras que eram intituladas como arte. Uma posição que, se pararmos para refletir, não está tão desatualizado, basta meditar sobre algumas letras de músicas, vazias em conteúdo e melodia. Adorno era musicólogo e um músico excelente, por esse motivo não poupou críticas ao cenário musical de sua época e à pobreza de suas composições. Também não poupou críticas ao cenário que essas obras estavam inseridos, motivados por uma indústria que invés de servir como fármaco, levava à alienação. Alienação essa que vinha mascarada pelo lucro obtido pelas vendas. Aqui já havia ficado denotado uma crítica a razão instrumental que mediaria todo esse processo.
Ao visarem à produção em série e à homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder, são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Por esse motivo, Adorno classifica a música de rádio e o cinema, como “negócios” e não como Arte; existe uma poderosa Indústria por trás de todos esses eventos.
Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo, como determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade em seu conjunto, assim como cada um dos seus elementos às condições que representam seus interesses. O que acaba por determinar o próprio conceito de gosto, como se verá mais adiante.

Sugestão de Leitura:

- Dialética do Esclarecimento - Adorno e Horkheimer.



[1] Adaptado do artigo original intitulado “A comercialização da arte e seu reflexo na educação”, apresentado como comunicação no 1ª Congresso Internacional sobre filosofia na Universidade, promovido pelo Departamento de Filosofia do Centro de Letras e Ciências humanas da UEL (Universidade Estadual de Londrina), no Paraná no período de 10 a 12 de maio de 2006.
[2] Cf. ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento, 1985.
[3] ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento, 1985, p. 114.